O Grande Mestre Hans-Joachim Koellreutter
O Grande Mestre Hans-Joachim Koellreutter

Texto de Teca de Alencar Brito

HJKHans-Joachim Koellreutter, alemão naturalizado brasileiro, chegou ao Brasil em 1937, tornando-se uma das mais expressivas personalidades da música e cultura brasileiras. Ainda que dissertar sobre sua longa trajetória neste país não seja, aqui, a questão central, é importante lembrar sua atuação dinâmica, ousada, polêmica e inovadora.

Foi Koellreutter quem instituiu no Brasil os cursos de férias; quem criou o Departamento de Música na Universidade Federal da Bahia, em Salvador (lá permanecendo, como diretor, de 1954 a 1962), os Seminários Livres da Pró-Arte em São Paulo e em Piracicaba, dentre outros. Formou músicos e compositores, levou o jazz e a música popular para a escola de música, sempre instigando, provocando, ensinando e estimulando o pensar. Seu nome está freqüentemente relacionado à sua fundamental atuação junto ao movimento “Música Viva”, assim como à ira que causou aos compositores tradicionalistas, que não conseguiam ver em suas posturas estéticas, o desejo de crescimento e transformação do ser humano.

As composições musicais de Hans-Joachim Koellreutter denotam coerência com postulados que defende e acredita, traduzindo o mundo que percebe, vivencia, conscientiza e reflete - constante e insistentemente. Fazer música é, para ele, maneira de estar em sintonia com o universo, sempre dinamicamente; a linguagem musical é meio de ampliação da percepção e consciência, contribuindo no sentido de superar preconceitos, pensamentos dualistas etc.

Apesar de ser reconhecido como o “grande mestre” de muitas gerações de músicos brasileiros, as reflexões, pesquisas e propostas de Koellreutter para a realização de um projeto de educação musical dirigido a todos, e não apenas aos futuros músicos, priorizando a formação integral dos indivíduos, ainda são pouco conhecidas e entendidas.Este foi um dos principais motivos que me impulsionaram a escrever o livro “Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical” Teca de Alencar Brito (Ed.Peirópolis, SP, 2001).

Para Koellreutter, a linguagem musical é um meio de ampliação da percepção e consciência, podendo contribuir no sentido da superação de preconceitos e pensamentos dualistas decorrentes do racionalismo, do mecanicismo e positivismo que marcaram o pensamento ocidental. “A música é, em primeiro lugar, uma contribuição para o alargamento da consciência e para a modificação do homem e da sociedade”, afirma ele. (H-J Koellreutter, 1997,p.72)

Uma análise das proposições pedagógicas de H-J Koellreutter, desenvolvidas no decorrer de sua vivência e experiência como músico e professor, revela sintonia com o pensamento de pedagogos, cientistas e filósofos contemporâneos voltados para a elaboração de novos paradigmas para a formação e o exercício da cidadania de seres humanos íntegros e integrados - consigo, com o outro, com o meio ambiente.

Sua formação e campos de interesse levaram-no a buscar meios para realizar trabalhos interdisciplinares onde a música, em constante diálogo com as outras áreas do conhecimento, visasse, em primeiro lugar, a formação do ser humano. Como europeu que conviveu com os graves problemas decorrentes de movimentos como o fascismo e o nazismo, Koellreutter vislumbrou na educação, com e pela música, a possibilidade de criar uma nova consciência, em oposição ao que nascia na Europa e que se vislumbrava no Brasil, no período que aqui chegou, com o Estado Novo de Getúlio Vargas.

A proposta pedagógica de H-J Koellreutter tem como pilares:

Os princípios que orientam sua postura como educador:

1. Aprender a apreender dos alunos o que ensinar;

2. Questionar tudo, sempre: por quê? (alfa e ômega, princípio e fim da ciência e da arte);

3. Não ensinar ao aluno o que ele pode encontrar nos livros.

A atualização de conceitos musicais, de modo a viabilizar a incorporação de elementos presentes na música contemporânea no trabalho de educação musical.

O relacionamento e a interdependência entre a música, as demais artes, a ciência e a vida cotidiana.

            Abordaremos, aqui, alguns dos principais aspectos orientadores da ação pedagógica proposta por Hans-Joachim Koellreutter:

        

1- O objetivo da Educação Musical

Como artista e educador, Hans-Joachim Koellreutter jamais considerou a educação musical unicamente em sua condição de meio para a aquisição de técnicas e procedimentos necessários à realização musical. Sua abordagem priorizou e valorizou a importância e o porquê da música (e da arte) na vida humana, sempre lembrando que cada sociedade, com suas características e necessidades próprias, condiciona um tipo de arte.

Koellreutter avalia que o avanço tecnológico e o aumento da densidade demográfica, próprios às sociedades urbanas contemporâneas, geram “culturas de massa constituídas por uma pluralidade de indivíduos cuja consciência do eu e cujo senso de responsabilidade social vêm sendo reduzidos ao mínimo; sociedades sem consciência da unidade, tradições e estilos, no pensar e atuar” (Koellreutter, H-J, 1998,p.43). Por isto, segundo ele, faz-se necessário:

“não orientar apenas para a profissionalização de musicistas, mas aceitar a educação musical como meio que tem a função de desenvolver a personalidade do jovem como um todo; de despertar e desenvolver faculdades indispensáveis ao profissional de qualquer área de atividade, como, por exemplo, as faculdades de percepção, as faculdades de comunicação, as faculdades de concentração (autodisciplina), de trabalho em equipe, ou seja, a subordinação dos interesses pessoais aos do grupo, as faculdades de discernimento, análise e síntese, desembaraço e autoconfiança, a redução do medo e da inibição causados por preconceitos, o desenvolvimento de criatividade, do senso crítico, do senso de responsabilidade, da sensibilidade de valores qualitativos e da memória, principalmente, o desenvolvimento do processo de conscientização do todo, base essencial do raciocínio e da reflexão. [...]

Trata-se de um tipo de educação musical que aceita como função a tarefa de transformar critérios e idéias artísticas em uma nova realidade, resultante de mudanças sociais. Este tipo de educação musical, mesmo no caso da preparação e formação de musicistas profissionais, vem a ser um tipo de educação para o treinamento de musicistas que, futuramente, deverão estar capacitados a encarar sua arte como arte funcional, isto é, como complemento estético de vários setores da vida e da atividade do homem moderno; músicos preparados, acima de tudo, para colocar suas atividades a serviço da sociedade: o humano, meus amigos, como objetivo da educação musical”. (Koellreutter, H. J, 1998, p 39-45)

Uma educação musical que tenha como objetivo a formação integral do ser humano só pode acontecer em contextos onde os alunos sejam respeitados e estimulados em todas as direções. Explorar, experimentar, sentir, pensar, questionar, criar, discutir, argumentar...exercícios geradores de auto-disciplina e consciência, são aspectos fundamentais em sua proposta, sempre promovendo situações de comunicação e relacionamento, de debate, estímulo ao pensar e conscientizar, integrando vivências musicais e de inter-relações humanas.

2- A questão do Método

“- Meu método é não ter método”, repetiu Koellreutter muitas vezes. “O método fecha, limita, impõe... e é preciso abrir, transcender, transgredir, ir além...”.

Koellreutter guiava-se, prioritariamente, pela observação e respeito ao universo cultural do aluno com seus conhecimentos prévios, necessidades e interesses, buscando viabilizar processos significativos de educação musical. A participação ativa, a criação, o debate, a elaboração de hipóteses, a análise crítica, sempre foram princípios básicos presentes em todas as situações de ensino-aprendizagem propostas e/ou coordenadas por ele.

Em consonância com os pontos acima expostos, Koellreutter sempre propôs a superação do currículo fechado, que determina previamente os conteúdos a serem transmitidos, sem uma averiguação e avaliação criteriosa do que realmente é importante ensinar a cada aluno, grupo, em cada contexto ou momento.São dele as palavras que se seguem, proferidas no ano de 1954, na abertura do Primeiro Seminário Internacional de Música, em Salvador, Bahia :

“Sabemos que é necessário libertar a educação e o ensino artísticos de métodos obtusos, que ainda oprimem os nossos jovens e esmagam, neles, o que possuem de melhor. A fadiga e a monotonia de exercícios conduzem à mecanização tanto dos professores quanto dos alunos.[..]

Inútil a atividade daqueles professores de música que repetem, doutoral e fastidiosamente, a lição já pronunciada no ano anterior. Não há normas, nem fórmulas, nem regras, que possam salvar uma obra de arte na qual não vive o poder de invenção. É necessário que o aluno compreenda a importância da personalidade e da formação do caráter para o valor da atuação artística e que na criação de novas idéias reside o valor do artista.” (Koellreutter, H-J, 1997, p.31)

Koellreutter sempre defendeu a necessidade da presença do “espírito criador”, princípio vital ao ambiente necessário ao ensino artístico. Torna-se interessante refletir sobre a consonância existente entre os princípios orientadores de sua ação pedagógica e aqueles que são próprios à pedagogia construtivista, bastante apregoada nos tempos atuais, mas pouco praticada, especialmente, na área da educação musical.

Hans-Joachim Koellreutter chamou a atenção, desde a primeira metade do século XX, para a necessária implantação de um ensino personalizado, criativo, que, acima de tudo, respeite o aluno. Sua experiência como professor, sempre ligada à formação de músicos (alunos de composição, harmonia, contraponto, regência, estética etc), permitiu-lhe colocar em prática, princípios adequados a toda e qualquer situação educacional, gerando reflexões que colaboraram no sentido de redimensionar o papel da música na educação, de um modo geral, e não apenas nos cursos de formação profissional de músicos.

 3- Currículos e Conteúdos: Ensinar “aquilo que o aluno quer saber”

Koellreutter sempre propôs a superação do currículo fechado e prescrito, que não averigua ou avalia o que realmente é importante ensinar a cada aluno ou grupo, em cada contexto e momento do processo. Orientava os professores, nos cursos de atualização pedagógica, para que ensinassem “aquilo que o aluno quer saber”:

“- É preciso aprender a apreender do aluno o que ensinar” - cansou de repetir.“- A melhor hora para apresentar um conceito, ou ensinar algo novo, é aquela em que o aluno quer saber. O professor deve estar sempre atento e preparado para perceber e atender às necessidades de seus alunos”- completava.

Disse-nos mais:

“- Não é preciso ensinar nada do que o aluno pode encontrar nos livros, pois essas questões ele pode resolver sozinho. É preciso aproveitar o tempo para fazer música, para improvisar, experimentar, discutir e debater. O mais importante é - sempre - o debate; nesse sentido, os problemas que surgem no decorrer do trabalho são mais importantes do que as soluções”.

Seguindo esse raciocínio o professor - muitas vezes - aconselhou:

“- Não acreditem em nada do que dizem os livros. Não acreditem em nada do que dizem seus professores. Não acreditem em nada do que vocês vêem ou, mesmo, pensam. E também não acreditem em nada do que eu digo. Perguntem sempre porquê a tudo e a todos. Tenham uma placa com um” Por quê?” bem grande escrito, em cima da cama de vocês e logo ao acordarem leiam e perguntem “por quê”?”.

A dúvida sempre foi, para Koellreutter, mola mestra de seu modo de ser e pensar. Mas é preciso cuidado para não confundir sua postura e orientação para questionar com a busca de respostas exatas, racionais e objetivas. Ao contrário, seu interesse foi sempre o de ampliar, transformar, repensar, integrar e, especialmente, lidar com a subjetividade inerente a todas as coisas. “Objetividade refere-se àquilo que tem um mínimo de subjetividade”, completava. “A estética e a teoria da música do nosso tempo partem do conceito de um universo sonoro que é considerado como um todo dinâmico e indivisível, que sempre inclui o homem num sentido essencial. Estética e teoria partem do conceito de um mundo que deixou de ser ou subjetivo ou objetivo para tornar-se onijetivo, ou seja, tanto subjetivo quanto objetivo. (Koellreutter,H-J, 1997, p.49).

Quando faz menção à questão dos conteúdos e programas, Koellreutter alerta para o fato de que “uma educação que tenda, essencialmente, ao questionamento crítico do sistema e não à sua reprodução, que tenda ao despertar e ao desenvolvimento da criatividade e não à adaptação e à assimilação, exige:

1- que as culturas não-ocidentais tanto quanto as originárias, aborígines ainda existentes neste planeta e, naturalmente, também no Brasil, sejam levadas em conta tanto quanto a ocidental;

2- que as artes e a estética, em particular, como reflexões sobre o ato criador encontrem lugar tão eminente quanto o das ciências e das disciplinas tecnológicas;

3- que a prospectiva como reflexão sobre os fins, os valores e o sentido do futuro em vias de nascer, e como tomada de consciência de nossas responsabilidades - temática mais importante do ensino pré-figurativo -, ocupe espaço tão amplo quanto o do passado.

Pois, só um conhecimento vivido das culturas não-ocidentais e originárias, isto é, um verdadeiro ‘diálogo das civilizações e culturas', permite dar resposta às indagações de hoje, em escala planetária, integradora. Permite realizar a grande reviravolta cultural necessária, tornando relativo o que se convencionou chamar ciências e artes, situando as duas áreas no contexto infinitamente mais vasto de uma sabedoria, na qual nossas relações com a natureza não são apenas de manipulação ou conquista, mas de amor e participação; uma abordagem em que o relacionamento de um com o outro e com a sociedade não é o de um individualismo, mas de comunidade, onde nossas ligações com o futuro não são definidas por uma simples extrapolação do presente e do passado, mas por ruptura, superação e transcendência: a criação de um futuro realmente novo “. (Koellreutter, H.J, 1997, p. 55)”.

É importante reforçar o fato de que a preocupação com a abrangência de conteúdos visa, sempre, o desenvolvimento de um trabalho relacional, questionador, transformador e que estimule a capacidade de criar.

4- O Ensino Pré-Figurativo

“O ensino pré-figurativo das artes é parte de um sistema de educação que incita o homem a se comportar perante o mundo não como diante de um objeto, mas como o artista diante de uma obra a criar.” (Koellreutter, H-J, 1997, p.55)

Em substituição à postura didática tradicional que “se limita a transmitir os conhecimentos herdados, consolidados e freqüentemente repetidos em aulas de doutoral e fastidiosa atuação do professor” (Koellreutter H.J, 1997, p 41), Koellreutter propôs o ensino que chamou de pré-figurativo, que “orienta e guia o aluno, porém não o obriga a sujeitar-se à tradição, valendo-se do diálogo e de estudos concernentes àquilo que há de existir ou pode existir, ou se receia que exista. Um sistema educacional em que não se ‘educa' no sentido tradicional, mas, sim, em que se conscientiza e orienta por meio do diálogo e do debate.” (Koellreutter, H.J, 1997, p. 41).

“Ensinar a teoria musical, a harmonia e o contraponto como princípios de ordem indispensáveis e absolutos, é pós-figurativo. Indicar caminhos para a invenção e criação de novos princípios de ordem é pré-figurativo.

Ensinar o que o aluno pode ler em livros ou enciclopédias, é pós-figurativo. Levantar sempre novos problemas e levar o aluno à controvérsia e ao questionamento de tudo que se ensina, é pré-figurativo.

Ensinar a história da música como conseqüência de fatos notáveis e obras-primas do passado, é pós-figurativo. Ensiná-la, interpretando e relacionando as obras-primas do passado com o presente e com o desenvolvimento da sociedade, é pré-figurativo.

Ensinar composição, fazendo o aluno imitar as formas tradicionais e reproduzir o estilo dos mestres do passado, mas, também, os dos mestres do presente, é pós-figurativo. Ensinar o aluno a criar novas formas e novos princípios de estruturação e forma, é pré-figurativo.” (Koellreutter, H.J, 1997, p.42)”.

Para Hans-Joachim Koellreutter, a educação musical deve considerar o estágio em que se encontram nossas sociedades, em virtude do desenvolvimento tecnológico e científico acelerados, em virtude dos problemas sócio-econômicos, das diferenças culturais, dos interesses e modos de pensar de nossas crianças e jovens, já que este amplo e complexo quadro exige a revisão permanente do papel que a música tem a desempenhar na formação dos futuros cidadãos. Segundo ele, o ensino pré-figurativo poderá preparar os jovens para viver numa época em que as transformações ocorrem em ritmo cada vez mais acelerado; por isto, esta é uma concepção de educação para o futuro, que implica em formação e reciclagem permanentes dos educadores.

O ensino pré-figurativo aponta caminhos futuros por também respeitar o presente, o contexto, as possibilidades que se apresentam, sempre com vistas a preservar e enriquecer o espírito criador. Essa é a metodologia de Koellreutter, como podemos constatar:

“A minha maneira de trabalhar parte sempre do aluno, dele para mim e não o contrário. O assunto das aulas resulta sempre de um diálogo, de uma discussão entre os dois polos: aluno e professor. [...] O problema é como motivar os alunos, criando uma situação de polêmica que lhes interesse ou então simplesmente partindo da prática musical, que tem que ser renovadora. Portanto, o melhor é a improvisação, utilizando todos os elementos que possam soar.” (Koellreutter, H-J, 1997, p.134)

 5- A Improvisação como Ferramenta Pedagógica

A improvisação é ferramenta fundamental na metodologia proposta por Hans-Joachim Koellreutter. Sua prática propicia a vivência e conscientização de importantes questões musicais, que são trabalhadas ao lado de aspectos relativos ao modo de ser humano como autodisciplina, tolerância, respeito, capacidade de compartilhar, criar, refletir etc. O trabalho de improvisação abre espaço para dialogar e introduzir os conteúdos adequados e necessários.

“- Não há nada que precise ser mais planejado do que uma improvisação” dizia sempre em suas aulas, alertando para a confusão que não raro acontece já que, para muitos, improvisar é apenas fazer “qualquer coisa”. “Para improvisar é preciso definir claramente os objetivos que se pretende atingir. É preciso ter um roteiro, e a partir daí, trabalhar muito: ensaiar, experimentar, refazer, avaliar, ouvir, criticar etc...”.

Koellreutter desenvolveu uma série de jogos que chamou de modelos de improvisação: jogos criativos que propõem a vivência e a conscientização de aspectos musicais fundamentais, estimulando a reflexão e preocupando-se, também, em sugerir situações para o exercício de uma nova estética musical. Koellreutter, que sempre defendeu a integração entre os níveis sensível e intelectual, de um lado, musical e humano de outro, encontrou nos jogos de improvisação com finalidades pedagógicas, os aliados fundamentais ao processo educacional. “Toda improvisação deve ter uma finalidade musical e também humana, como desenvolver a concentração (autodisciplina)”.

   

6- Percepção e Consciência

O processo de formação musical proposto por Koellreutter respeita o nível de percepção e consciência de cada aluno(a). Aliás, todo o seu discurso é permeado pela questão da consciência que, sem dúvida, ocupa lugar de destaque em suas reflexões.

Fundamentando-se nas relações entre a psicologia da gestalt, a fenomenologia e a física quântica, Hans-Joachim Koellreutter define consciência como a capacidade do homem de apreender os sistemas de relações que o determinam: as relações de um dado objeto ou processo a ser conscientizado com o meio ambiente e o eu que o apreende. O conceito consciência, para ele, não se refere à consciência como conhecimento formal, nem como mero conhecimento ou qualquer processo de pensamento, mas, sim, a uma forma de inter-relacionamento constante, um ato criativo de integração. Ele afirma a existência de três tipos de consciência: intuitiva, racional e arracional, associados à crença irracional, à especulação científica e à transcendência destes.

Koellreutter considera os níveis de conscientização humana, presentes no decorrer da história e também na vida de cada indivíduo, como de significativa importância para a compreensão do processo de criação e expressão humanas, bem como para o processo de formação e educação. Ele chama a atenção para o fato de que devemos considerar a transformação da consciência como enriquecimento, como ampliação da percepção numa dimensão nova e não como mero progresso, que resultaria no afastamento da origem e no distanciamento do todo.

Por considerar as características globais do estágio atual de nossa civilização e a transformação da consciência do ser humano deste novo tempo, a música do século XX e, com ela, toda uma nova terminologia, princípios estéticos e estruturais ocupa lugar de grande importância no projeto pedagógico de H-J Koellreutter. Mas “todas as músicas”, de épocas, gêneros e estilos diversos são valorizadas e trabalhadas, seja em situações de escuta e análise, seja em situações de interpretação.

Conclusão (Teca Alencar de Brito)

O desenvolvimento de um trabalho de educação musical, no Brasil, com base nos aspectos enfocados neste texto, não é uma tarefa fácil, especialmente considerando a extensão, o crescimento populacional e os sérios problemas sócio-econômicos e culturais enfrentados no país.

Importante questão diz respeito, a meu ver, à necessidade de reformulação dos programas de ensino nos cursos de formação de profissionais para o ensino de música. Estes devem visar o desenvolvimento de uma visão global e integradora do mundo, atendendo, também, à necessária atualização pedagógico-musical, que deve passar pelo enfoque de aspectos relativos à estética da música contemporânea, das músicas não-ocidentais etc...

Será preciso, também, contar com a presença efetiva de profissionais bem preparados em todas as salas de aula, prontos a “apreender dos alunos o que ensinar” para, dessa maneira, gerar processos significativos de ensino-aprendizagem. Por enquanto, amplia-se o número de métodos homogêneos e padronizados de ensino musical, propondo as mesmas coisas para todos os alunos ou grupos e deixando de lado questões essenciais, tais como o respeito ao interesse, experiência e conhecimento do aluno e a postura efetivamente ativa, que implica em experimentar, criar, analisar, criticar, dialogar e, principalmente, vincular-se afetivamente com o trabalho realizado.

Antes de qualquer coisa, é preciso instalar um sistema político-educacional que valorize a atuação do educador mediante pagamento justo e digno e mediante, também, condições que favoreçam o estudo, atualização e pesquisa permanentes. Mais ainda: precisamos contar com salas de aula com espaço, materiais e número de crianças adequados à realização de um bom trabalho. No entanto, podemos e devemos “jogar nossa pedra no lago”, tomando de empréstimo, mais uma vez, suas próprias palavras “O mundo intelectual, cultural é um grande lago, onde todos nós jogamos pedras. Umas um pouco maiores, outras menores, mas nós movimentamos este lago. Isto é o que me parece essencial: o movimento”. (Koellreutter, H.J, 1997, pag.135).

Encerro dizendo da alegria e importância de apresentar, ainda que superficialmente, o pensamento pedagógico de Hans-Joachim Koellreutter, meu grande mestre. Não poderiam deixar de ser dele as palavras que finalizam este texto, convidando-nos a - mais uma vez - refletir:

“- É chegado o tempo de renunciar a títulos, hinos nacionais, bandeiras e insígnias. Teremos de aprender a esquecer que somos doutores, professores, diretores ou alemães, japoneses, indianos, brasileiros, ou qualquer outra nacionalidade, uma vez que se trata do homem. Teremos de aprender a ser, sobretudo gente, apenas gente, e estenderemos nossa consciência nacional a uma consciência supranacional. Teremos de desenvolver o sentimento de solidariedade de todas as nações, a consciência de compromisso perante uma comunidade cultural e política universal. Teremos que entender que tudo o que hoje ainda nos parece particularidade nacional, no fundo é apenas o fenômeno individual de uma só e mesma coisa: ou seja, o ser humano. No séc. XX somos chamados a formar esse homem livre, destituído de preconceitos, que pensa e sente em termos supranacionais, a desenvolver suas capacidades e a preparar um mundo realmente humano. Por isso, parece-me necessário elaborar um sistema educacional em cujo centro se encontre um fórum de intercâmbio de idéias supranacionais - um local de cooperação cultural, uma escola de pensamento universal na medida do homem”. (Koellreutter, 1997, p. 64).

*Hans-Joachim Koellreutter nos deixou nove dias após completar 90 anos. Estava doente e isolado do contato social, mas muito presente no cotidiano da cultura brasileira e especialmente no ser e estar de todos aqueles que conviveram com suas idéias, proposições e, principalmente, com seu modo de viver e conviver.

Dedicou sua vida à construção de um novo mundo valendo-se, para tanto, da música e da educação, armas poderosas, sem dúvida! Um mundo sem fronteiras, com respeito e igualdade entre todos foi seu ideal, desde muito jovem, influenciado, obviamente, pelas experiências que vivenciou na Alemanha nazista.

Veio para o Brasil muito jovem, em 1937, e logo conscientizou o fato de que uma ação educativa seria o caminho para a transformação. Assim, deixou em segundo plano uma carreira promissora como flautista, para dedicar-se com empenho a conscientizar e comunicar esse mundo que vislumbrava.

* Hans-Joachim Koellreutter nasceu em Freiburg – Alemanha em 02/08/1915

+ faleceu em São Paulo – Brasil em 13/09/2005